terça-feira, 11 de novembro de 2008

A VOLTA DO CATA-TRALHA



As primeiras declarações do futuro secretário municipal de Assistência Social, Fernando William, sobre como sua pasta cuidará do problema das populações de rua, são desalentadoras. Ao se referir à Fazenda Modelo como espaço subutilizado, além de anunciar como prioridade a construção de novos depósitos humanos, o auxiliar de Eduardo Paes deixa claro sua opção pela solução simplista de varrer a miséria para debaixo do tapete.




Se estiver minimamente interessado em socorrer as milhares de pessoas que perambulam pelas ruas do Rio, sugiro ao secretário Fernando William que leia o livro “No olho da rua – a vida na Fazenda Modelo, um dos maiores abrigos de mendigos do mundo”, de Marcelo Antonio da Cunha, onde ele conta sua experiência durante o tempo em que administrou a instituição.



O livro narra, de forma visceral, a desgraça humana que pode se abater sobre qualquer um de nós. Ao lado de quem já nasceu na miséria, Marcelo Cunha encontrou na Fazenda Modelo pessoas que já tiveram casa, carro, emprego e família estável. Este foi o caso de “seu Gabriel”, bancário desempregado que, por não ter dinheiro para voltar para casa, na Baixada Fluminense, passou uma noite dormindo na calçada. A situação se repetiu pelos dias seguintes, até que foi apanhado pelo “cata-tralha”, como era conhecido o ônibus da prefeitura que recolhia os indigentes.



- Fui trazido muitas noites para a Fazenda Modelo, mas de manhã eu voltava para as ruas. Até que um dia fiquei por aqui mesmo. Acho que foi aí que me reconheci como mendigo. Antes, meu orgulho não permitia. Isso é como areia movediça, a gente vai afundando e quando se dá conta não pode mais sair, conta “seu Gabriel” ao autor do livro.



A Fazenda Modelo, descontinuada como centro de captação de moradores de rua a partir de 2003, era uma nação de indigentes. Ali, onde já se amontoaram 2.500 pessoas submetidas a leis próprias de convivência e conduta, a violência e a promiscuidade caminhavam juntas. Marcelo Cunha choca o leitor com os horrores praticados num campo de concentração mantido com o dinheiro do contribuinte. Tráfico de drogas, abusos sexuais cometidos contra crianças, sessões de espancamento para “disciplinar internos problemáticos”, eram alguns dos crimes permitidos nesta cidade de homens sem alma.



Hoje, o espaço de triste memória se tornou um centro de segurança alimentar, onde funciona a Escola Carioca de Agricultura Familiar, financiado pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que forma 50 alunos a cada três meses. Ali também funcionam programas como o Bolsa-Família e o PETI, voltado para a erradicação do trabalho infantil, entre outros.



Agride aos olhos, de quem passa pelas ruas da Cidade Maravilhosa, a visão de homens, mulheres e crianças, farrapos humanos nascidos ou levados à miséria. Não sabemos ainda quais os impactos da atual crise econômica, mas não custa lembrar dos milhões de trabalhadores que perderam o emprego com a crise de 1929, que foram parar na fila da distribuição de sopa para terem o que comer.



A porta de entrada de depósitos humanos não tem saída. Tomara que o futuro secretário de Assistência Social perceba a tempo o equívoco que está cometendo, para evitar, inclusive, que um cidadão desempregado, sem dinheiro, vítima do cassino financeiro internacional que abalou a economia mundial, seja colocado dentro de um cata-tralha.

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